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A trajetória de Pixote Mushi revela uma rara coerência entre gesto, matéria e pensamento. Sua obra nasce da tensão entre o urbano e o ancestral, entre o corpo em movimento e a escuta do inconsciente. Desde os anos 1990, quando iniciou sua caminhada pelo graffiti nas ruas de Diadema, o artista desenvolve um vocabulário visual que resiste à simples classificação. O traço — contínuo, enérgico e espiritual — é o eixo que une linguagens, mídias e temporalidades. Ele não é apenas forma ou contorno, mas signo vital, força que atravessa o visível e o simbólico.
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Formado em computação gráfica e com experiência em modelagem 3D, Pixote absorveu das tecnologias digitais a precisão estrutural e o sentido de composição espacial. No entanto, seu gesto é radicalmente humano. A mão que risca o muro, o papel, a madeira ou a tela busca algo que antecede o controle técnico: a escuta do corpo e da memória. Em suas pinturas e gravuras, o traço é ao mesmo tempo mapa e cicatriz — registro da passagem de um sujeito que se sabe atravessado por múltiplas heranças culturais.
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A potência simbólica de sua obra está enraizada nas matrizes afro-indígenas brasileiras, em suas cosmogonias, ritmos e mitologias. Essa dimensão não é ilustrativa, mas espiritual: emerge da convivência com o gesto, do tempo da matéria e da relação com a terra. Ao investigar as próprias raízes em Juazeiro do Norte, o artista reconhece no barro, no entalhe e no pigmento o prolongamento de uma memória coletiva que resiste. Em vez de representar o sagrado, Pixote o reencena por meio do processo: o fazer como rito de passagem, o traço como rezo.
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No campo pictórico, suas telas articulam uma geometria orgânica, marcada pela simetria e pela tensão entre estrutura e fluidez. Há nelas ecos do cubismo afro-brasileiro, em diálogo com referências modernas e populares — de Tarsila a Carybé, de Heitor dos Prazeres à xilogravura nordestina. Essa síntese não é mera colagem de estilos, mas uma operação de tradução cultural: a linguagem do graffiti, nascida no asfalto, é transmutada em pintura de ateliê sem perder sua vibração de rua. O muro continua presente, mesmo quando a superfície é a tela.
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Sua pesquisa recente amplia o campo material e simbólico da pintura. Entre o óleo, o acrílico, a gravura e o suporte digital, Pixote explora o inconsciente como território produtivo, lugar onde as imagens emergem antes do discurso. Inspirado pela psicologia analítica de Jung, o artista identifica nos arquétipos — o corpo, a sombra, o ancestral, o feminino — fontes de ressonância entre o individual e o coletivo. Ao invés de representar o inconsciente, ele o convoca: cada obra é um espelho fragmentado, no qual a identidade se refaz a cada gesto.
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O artista compreende o ato de pintar como escuta. A matéria o guia; o gesto responde. O tempo da pintura não é o da produtividade, mas o da experiência. Cada obra, muitas vezes gestada ao longo de meses, carrega camadas de silêncio, espera e fricção. O que emerge desse processo é uma imagem que respira — não se fecha, não se explica. Suas composições abrem passagens, sugerem encontros, reconstroem um corpo que não se quer uno, mas plural, híbrido e mestiço.
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Há, em seu trabalho, um permanente desejo de reconciliação entre mundos. A rua e o museu, o corpo e o espírito, o passado e o presente, o Brasil profundo e o urbano contemporâneo se entrelaçam num mesmo gesto. Essa condição liminar, de quem habita as margens e as travessias, constitui o verdadeiro território de sua arte.
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Assim, a obra de Pixote Mushi pode ser compreendida como um ato de cura. Cura no sentido ancestral — de recompor aquilo que o tempo e a história fragmentaram. A cada traço, o artista reconecta o visível e o invisível, o pessoal e o coletivo, o sagrado e o cotidiano. Sua pintura não é apenas imagem: é gesto ritual, é palavra não dita, é memória encarnada.
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O traço, em Mushi, não é a linha que separa, mas a que une. Ele é a cicatriz da história, mas também o caminho de volta à origem.


